"Foi a partir da sua descoberta enquanto pessoa não-binária que Thiá Sguoti se emancipou dos paradigmas da sociedade. Sua pesquisa olha para o corpo e suas identidades de forma lúdica, criando fantasias que mesclam corpos reais e corpos imaginários, convidando ao conhecimento sensitivo. O seu fazer artístico surge das camadas que influenciam o modo de viver, os comportamentos, as ações, as vestimentas e as interrelações corporais."
Texto para a Superbacana+
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— Vivian Villanova
Criadora do Vivieuvi e idealizadora de projetos que pensam a arte
A partir de uma longa pesquisa sobre o imaginário da sereia e suas representações em várias culturas, usando tanto materiais orgânicos quanto resina, Thiá Sguoti aborda as questões de gênero, sexualidade e mito. A artista se aprofunda nessa figura feminina e ambígua, cujas representações são encontradas basicamente no imaginário popular dialogando com a sexualidade feminina.
Texto para a exposição Sustentar o Efêmero.
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— Tania Rivitti
Criadora e gestora do Ateliê397
"Thiá Sguoti (São Paulo, 1995) é uma artista trans, licenciada em Artes Visuais e sua pesquisa gira em torno da figura mítica da sereia, que a interessa desde a sua infância. Cada pessoa é um mundo, já escreveu Clarice Lispector, e adentrar no mundo de Thiá se torna cada vez mais instigante e complexo, com os desdobramentos e repetições de nossos encontros. A artista me conta sobre a sua pesquisa, que vai além das mitologias clássicas, e das leituras mais populares que mencionam sereias, como o famoso "A água e os sonhos" de Gaston Bachelard. Ela se aprofunda. De maneira a saber diferenciar teorias, origens e culturas que conectam-se à essa mitologia ancestral.
Para a artista é importante ultrapassar as referências do Renascimento, e as castrações da igreja católica perante a figura da sereia, que passou a ser representada com as genitais cobertas. E a sua cauda, que antes dividia-se em duas pernas escamosas, se unifica desde a cintura até os pés. A artista, Thiá Sguoti, se interessa por uma narrativa mais disruptiva sobre o tema, e relembra a produção do surrealista René Magritte que retratou a figura do "peixe ao inverso", ou seja, com a cabeça de peixe mas com as pernas e genitais novamente à mostra. A artista deseja, afinal, conectar-se aos avanços mais progressistas sobre corporeidades e suas performances sociais. Desvendando e fabulando hipóteses ao redor da figura da sereia que já refletiram questões espirituais e sociais de determinadas épocas e que atualmente, sob a óptica queer da artista, seguem acontecendo na contemporaneidade.
Como em um jogo de memória, o seu ateliê abriga um altar repleto de pequenas estátuas de sereias, de diferentes nacionalidades e religiões. Uma das esculturas é escolhida para preencher a primeira esquina do espaço expositivo, do viveiro, com cor branca e visualmente discreta, chega a camuflar-se com a cor das paredes. A diversidade de religiosidades manifesta-se nas obras "Oṣun", e "Yemọja", cujo título é escrito em idioma Iorubá, e suas cores metalizadas, como as escamas, ganham as cores: dourado e prata, emulando as referências das entidades religiosas de matriz africana, expograficamente dispostas, uma em seguida da outra, como irmãs.
E no outro canto, do lado direito no chão, está a obra "Estudo fossilizado de uma sereia", que nada mais é do que o molde que dá origem às barbatanas, estas, que também encontram-se exibidas em Vivarium, e dão o visual de observatório de sereias. Thiá manifesta o seu grande interesse pela moda e sua habilidade adquirida com o jogo do molde e contramolde, realiza moldes de seu próprio corpo que dá origem às impactantes caudas de sereia. Como vemos, na obra "Terra sem Mar" da série Farsa-Fantasia, que encontra-se visualmente em destaque nesta exposição, e pendurada do teto ao chão.
Sua mais recente produção vem da elaboração em cerâmica, que resulta na obra "Portal", uma emblemática instalação que inclui o formato de uma vesica - forma baseada na geometria sagrada, que simboliza o encontro de dois círculos - que ganha o tom metalizado e prata sobreposto por uma cabeça de peixe, que parece atravessar a fisicalidade da parede, e literalmente atravessar um portal. Quase como conectando-se através de um arco temporal, entre passado e presente."
Texto sobre a exposição Vivarium.
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— Núria Vieira
Curadora e pesquisadora
"Este conjunto de fotografias discute questões de gênero e conceitos de beleza. Imageticamente, a artista posa como uma sereia, figura mitológica presente em diversas lendas. Ela personifica o mar e os seus perigos, já que, por meio de sua beleza e canto, atraia os navegantes para abraçá-los e matá-los por afogamento. Psicanaliticamente, é realizada a alusão de ela ser uma "devoradora" de homens, pois, frígida da cintura para baixo, não conseguiria atender aos seus impulsos sexuais.
A postura escultórica clássica do corpo desejado, seja com barba, com cabelos sensuais, com maquiagem ou com cauda de sereia, aponta para distintas possibilidades de beleza, desejo e prazer sob perspectivas que fogem a estereótipos e discutem a diversidade como algo a ser vivenciado."
Texto sobre a obra Transições.
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— Oscar D'Ambrosio
Curador e crítico de Arte
"A estética como modo pelo qual captamos o mundo ao redor através da “aesthésis” resulta num impacto, uma sorte de registro desse mundo exterior que adentra nossa interioridade. Para Aristóteles, a aesthésis exterior do mundo somente é possível de impactar-nos, pois, somos dotados de potências internas, ou “dynamis”, resultante de nossas faculdades sensoriais como o enxergar, o ouvir, o tato, o paladar, etc. Portanto, os afetos, ou seja, aquilo que nos afeta, que nos impacta direccionalmente de “fora” para “dentro” é transmitido pela estética externa para ser captado por nossas potências internas e transformadas em conhecimento, “gnosis”, que se diferencia do conhecimento empírico, “epistéme”, mesmo que não menos importante.
O trabalho de Thiá Sguoti é um convite ao conhecimento sensitivo, ou sensorial, o conhecimento, por assim dizer, gnóstico dos sentidos. A estética de Sguoti impacta, afeta os sentidos através da mais anciã das formas afetivas que incitam nossas potências: a sexualidade, ou sexo. Quando, por exemplo, as rosas de uma roseira “atraem” abelhas para disseminar o pólen e fecundar novas plantas, assim o fazem utilizando as rosas como órgãos sexuais da roseira. Por isso que, quando presenteamos rosas, ou outras flores a alguém, estamos presenteando-as com os órgãos sexuais de uma planta. Ora, ninguém menos do que Charles Darwin escreveu extenso tratado de como o sexo, e os órgãos reprodutivos de um ente vivente, tornam-se os maiores mecanismos de sobrevivência de uma espécie. Por isso, esteticamente, ou afetuosamente impactante, é o sexo, a genitália, que desperta o interesse e assim a reprodução daquilo produzido, a “poésis”.
Ao inverter o corpo da sereia, colocando-lhe uma cabeça de peixe e um corpo humano com a genitália exposta, Sguoti retoma precisamente esta tradição da estética como afeto de despertar o interesse de forma ancestral. Se, por um lado, o eurocentrismo da tradição moderna condena o corpo, em especial, o feminino, associando-o ao pecado, por outro lado, as tradições antigas colocavam o corpo num patamar mais expressivo, num patamar de “summa” importância exatamente por garantir o afeto do interesse pela preservação e reprodução da Vida."
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— Gabriel Frossard Barbosa
Escritor e Mestre em Políticas Públicas